domingo, 15 de julho de 2012

LIVRO DE ALÍCIA



IDIOMAS DE APRENDENTES
PSICOPEDAGOGOS, 
Eis o prefácio de um livro maravilhoso!
É Alícia Fernandes!

Permitam-me iniciar este prefácio adiantando-lhes uma passagem que
Alicia Fernández escreve neste livro:
Se um aluno "está no mundo da lua", o problema do professor será o
de como trazer a "lua" ao mundo da criança, já que, se quiser expulsar
a "lua" da aula, expulsará também o aprendente que há em seu aluno.
Por outro lado, essas "luas" costumam estar habitadas pelas situações
mais dolorosas da vida das crianças.
É na leitura de pepitas como essas que as palavras vão atravessando
metamorfoses muito curiosas. Por momentos, já não é mais uma
leitura que pressupõe um certo distanciamento eu-outro; há um pólus
de afeição presente, e o corpo responde em um pulsar alto, tão alto
que as palavras liquesceram e a pura emoção ecoa de algum lugar
muito profundo: "sim, é isto, eu também preciso aprender dessas
lindas e dolorosas luas que habitam em mim"!
Quantas vezes escutamos que a psicopedagogia historicamente se
relacionou com a enfermidade individual, em uma perspectiva de
recuperação daquilo que faltava à criança para poder pertencer ao
sistema educacional? Idioma único, criado para responder a uma
demanda social, caminho naturalizado, expulsivo da essência
definidora de cada sujeito. Momentos históricos marcantes, ainda
muito presentes em nossa realidade psicológica e educacional, os
quais criaram sistemas identificatórios - as disciplinas - com o objetivo
de normatizar o pensamento científico e estabilizar as práticas sociais.
Ficamos, assim, muitas vezes impedidos de diferenciar o urgente do
importante. Preocupamo-nos mais com que as crianças aprendessem
sobre a lua do que nós aprendermos com as luas que habitam as
crianças.
Os idiomas do aprendente é um livro que celebra o encontro particular
com as nossas subjetividades ao mesmo tempo ensinantes e
aprendentes, lugar privilegiado por onde podemos transitar no espaço
da teoria e da prática psicopedagógicas. Lugar igualmente difícil, pois
não se trata de uma estocagem ) de informações ou técnicas sobre
como ou o quê fazer para transmitir algum conhecimento ao outro.
Como aponta Alicia, muito mais importante que os conteúdos
pensados é o espaço que possibilita fazer pensável um determinado
conteúdo. É nesse espaço, onde nada é exclusivo - os conteúdos
aprendidos ou não-aprendidos, os condicionantes orgânicos, as
operações cognitivas, os determinantes inconscientes - e tudo se
articula em uma escuta entre, que os idiomas de cada um serão
expressos como possibilidade.
"Idioma", como lembra Alicia, que em grego significa "caráter próprio
de alguém, particularidade de estilo", é um conceito que não se presta
a traduções ligeiras. Se quisermos traduzir nosso idioma de modo
apressado, provavelmente perderemos o contato com a riqueza e a
alegria de sua potência -justamente o fato de que não há traduções
rápidas nem totalizantes, mas re-traduções, rearranjos infinitos que
brincam com nossos pensares. O caráter próprio de alguém, a
particularidade com que vai imprimindo sua relação com o
conhecimento e seu idioma, o trabalho psíquico que implica construirse
aprendente/ensinante, estes são temas que Alicia vai aprofundando
neste livro, como quem segue esculpindo uma obra de arte em pedra
dura - não para deixá-la lisa, mas para seguir aprofundando suas
gretas. Sem querer carimbar conceitos já conhecidos, busca os seus
interstícios, alçando vôos para que o passado siga autonomizandose/
autorizando-se, possibilitando que a teoria respire dentro de um
mundo que não cessa de desafiar. Uma das chaves preciosas por
onde a teoria respira está na riqueza com que Alicia ensina-nos sobre
o mais simples e o mais profundo e paradoxal do processo de
aprendizagem - só ensina quem se deixa ensinar...
Esta obra é dedicada, fundamentalmente, a dialogar com aqueles que,
segundo Alicia, muito a ensinaram: seus alunos, leitores e
aprendensinantes. Deles escutou um especial interesse pelo tema das
Modalidades de Aprendizagem, apresentado no livro A inteligência
aprisionada (1990), o qual seguiu aprofundando no segundo livro A
mulher escondida naprofessora (1994), com uma reflexão mais
intensa sobre as modalidades ensinantes a partir dos vínculos
primários corporais/vigorizantes.
No livro atual, embora diferencie as modalidades de aprendizagem
das modalidades de ensino (até porque, por exemplo, nem toda
modalidade de ensino patogênica gera uma modalidade de
aprendizagem patogênica), ensina-nos que não há nada mais
enriquecedor do que propiciar ao nosso aprendente que ele descubra
que tem algo para ensinar aos outros, sejam crianças ou adultos, pais,
terapeutas, professores. O ensinante que se situa como se tivesse
que transmitir apenas aquilo já sabido, já pensado, como poderia não
cindir o ato de ensinar do ato de pensar? Alicia não defende o
estereótipo de um vínculo ensinante-aprendente ideal ou idealizado,
mas fala que o pensar habita o momento, o instante da relação, o
lugar de eleição/ escolha e que isso implica autorização para a
criatividade e uma responsabilidade ética. Escolher traduz-se, então,
em autoria e responsabilidade, sempre que nessas posturas estiverem
contidas nossas marcas pessoais, nossa própria história contada por
outros, mas recontada e ressignificada por nós mesmos, o
reconhecimento de nossa originalidade: "historicizar-se é quase
sinônimo de aprender..."
Como dizia no início deste prefácio, Os idiomas do aprendente remete
o leitor ao avesso das traduções rápidas e fruto de um pensamento
unidirecionado e engessado. Para nós, psicopedagogos e estudiosos
da aprendizagem, o exercício da autoria de pensamento torna-se
ainda mais necessário quanto mais vivemos o engano de que a lógica
do mundo atual tudo pode explicar, que o único que ultrapassa o
número dos problemas é o número de soluções que é proposto. Se há
adultos e crianças distraídos, desatentos, requerem-se mais soluções,
mais técnicas psicológicas, mais tecnologia, mais informação, e o
resultado é, no limite, mais problemas. A chave desse ridículo radica
em que as soluções estão feitas com a mesma lógica, com o mesmo
conhecimento que os problemas que resolve: problema e solução são
a chave e o avesso da mesma realidade que nos embaraça - mais do
mesmo. O excesso é nossa exigüidade. Este livro é também uma
denúncia forte, fundamentada e enunciadora de uma ética frente aos
sofrimentos humanos. Mais uma vez, Alicia introduz uma série de
perguntas e reflexões para que, partindo da psicopedagogia, os
problemas de aprendizagem possam ser abrangidos em sua
complexidade, que inclui os significados pessoais, vinculares, éticos e
políticos, tanto de quem é escutado como de quem escuta. Talvez,
desse modo, estejamos mais próximos da polissemia do ser, dos
idiomas do aprendente.
Esta obra potencializa, assim, o pensamento que vem sendo
desenvolvido por Alicia, possibilitando ao leitor novos encontros com
seu trabalho para que ele também possa potencializar-se. Sua
intensidade emocional em nada difere de sua intensidade teórica, e o
resultado é um livro que nos comove porque nos ensina e nos ensina
porque nos comove.

Regina Orgler Sordi

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