Autora: Flavia Bonfim
Sinônimo
de agitação, desatenção, dificuldades escolares e impulsividade, a
palavra “hiperatividade” já faz parte do vocabulário contemporâneo.
Proveniente do saber médico, ela, com o apoio da mídia, tem habitado os
mais variados discursos (de psicólogos, psicopedagogos, professores e, até, dos pais)
e é cada vez mais comum recebermos pacientes com este diagnóstico. A
hiperatividade ou, para usarmos a terminologia da medicina, o Transtorno
de Déficit de Atenção por Hiperatividade (TDAH), não se constitui como
um diagnóstico para a psicanálise, todavia, isso não nos exclui de
pensar sobre a agitação da criança. Sendo assim, proponho apontar
algumas reflexões psicanalíticas a respeito do que se tem chamado de
hiperatividade.
Sobre o sintoma da criança, Lacan, em suas “Notas sobre a criança”, nos diz o já conhecido aforismo “O sintoma da criança se acha no lugar de responder ao que há de sintomático na estrutura familiar.” (2003, p. 369)
Para ser mais preciso, Lacan (ibid.) afirma que, o que há de
sintomático na criança depende das questões que assolam o casal ou a
mãe. São questões inconscientes, que tratam daquilo que eles não sabem a
respeito de si próprios. Contudo, não podemos dizer que a criança é um
mero receptor passivo das dificuldades do casal parental. Há uma
participação da criança na formação do seu sintoma na medida em que ele
surge em função do “modo como
ela subjetiva o que foi transmitido e o que ela investe no sintoma, o
ganho que ela retira dali, e que constituirá ‘a resistência com a qual
ela se apegará à doença’ ”. (LAMY, 1998, p. 129)
Apoiando-se
na formulação lacaniana sobre o sintoma da criança e procurando pensar
especificamente a hiperatividade, Maryse Roy (2003) afirma que a
agitação ocupa o lugar da distância que não há entre a criança e a mãe,
distância, que oportunamente, pode produzir o pai. É
uma distância que visa recusar as demandas maternas que lhe são feitas.
Cabe aqui assinalar uma tendência atual, a saber, a dificuldades dos
pais em relativizar os ditos e imperativos maternos e, consequentemente,
em propiciar tal distância.
Desse
modo, a hiperatividade vem responder a uma dificuldade na incidência da
função paterna sobre o desejo materno, de modo que o objeto criança não
seja tudo para a mãe e que o desejo da mulher/mãe possa também ser
dirigido a um homem. Roy (ibid.) continua, e afirma que a melhor maneira
de estabelecer esta distância é o homem não recuar frente a fazer de
uma mulher causa de seu desejo. Não proporcionar esta distância, não
neutralizar, em certa maneira, o desejo do Outro materno, é deixar a
criança em perigo, desamparada frente à sensação da possível aniquilação
do seu ser. Sem essa distância, o enigma frente ao desejo do Outro pode
se mostrar extremamente angustiante.
Roy
(ibid.) chama atenção - e compartilho desta observação na clínica -
para a freqüência com que as mães, ao falarem da agitação do filho,
fazem referência à impotência do homem em exercerem seu papel de pai.
Não podemos ignorar que essa queixa, contudo, pode estar dizendo do
papel do homem como pai ou como marido. Roy (ibid.) acrescenta que,
nesses casos, há um gozo em excesso da mãe, que diz da dificuldade do
pai em exercer sua função. É um gozo enigmático e de difícil
assimilação, que se impõe a criança e esta não sabe o que fazer. Penso
se esse “não saber o que fazer” é justamente o que leva a criança a
querer fazer tudo ao mesmo tempo na tentativa de dar conta desse gozo,
que precisa ser contornado.
Maria
Inês Lamy (2005) aponta que uma criança que não consegue ficar quieta
no lugar, talvez não saiba qual seu lugar no mundo ou no desejo dos
pais, ou pode estar colocando em questão o lugar que está reservado para
ela no seu meio familiar. Pode também estar temendo ficar sem lugar
nenhum ou pode, através de sua agitação, estar querendo se deslocar de
um lugar identificatório, que para a criança se mostra insuportável.
Desse modo, ela propõe pensar a agitação como equivalente à angústia
frente ao enigma do desejo do Outro. A agitação surgiria, diz Lamy
(ibid.), no momento anterior a produção da angústia. E o que angustia o
sujeito é não saber que objeto a é para o Outro, pois, como afirma Lacan, a angústia “não é sem objeto”. (2005, p. 146)
Cabe
aqui tratarmos também dos casos onde a hiperatividade está associada à
desatenção, acarretando para muitas crianças severos problemas de
aprendizagem. Maria Silva Hanna articula o déficit de atenção à
inibição, sendo esta última, “uma tática de defesa que resiste ao desejo do Outro, enigma que provocaria a emergência da angústia.” (2003,
p. 151) Freud, em “Inibições, Sintomas e angústia” (1926), já havia nos
alertado quanto à íntima relação entre a inibição de uma função do eu e
a angústia, na medida em que a primeira atua evitando o surgimento da
segunda. Hanna (2005), partindo da perspectiva lacaniana, escreve que a emergência da angústia advém do confronto com a pergunta Che vuoi? (Que
queres?), que se desdobra para “O que o Outro quer de mim?”. Tal
pergunta implica em se deparar com a falha radical de estrutura, com a
castração do Outro, com o desejo do Outro. O inibido se antecipa a essa
pergunta por meio de uma restrição da função do eu - no caso, uma
restrição da função da atenção - mas paga promovendo, por outro lado,
uma estagnação do seu desejo.
Diante
disso, finalizo minhas reflexões sobre a hiperatividade apontando para
uma possível direção de tratamento, no qual a escuta deve estar dirigida
à criança e aos pais. O trabalho com a criança permite que a mesma
encontre um espaço de simbolização para abordar aquilo que a angustia,
ou seja, o enigma frente ao desejo do Outro. É também o lugar onde ela
pode tentar tratar o excesso de gozo proveniente da mãe, ao invés de se
agitar na tentativa em vão de se livrar de tal incomodo. Na
escuta dirigida à mãe, busca-se promover o encontro com o desejo dela
que se encontra tamponado pelo sintoma do filho, impedindo-a de se haver
com sua própria falta. E, nos casos onde o pai pode ser acessado,
permitir que o mesmo venha a se deparar com sua dificuldade de tomar uma
mulher como causa de seu desejo e exercer a função paterna, sem,
contudo, nos propormos a intervir de modo a “fazer o pai
funcionar”. Simplesmente convidar o pai da paciente a ir a uma
consulta pode ter um papel importante na condução clínica.
A
escuta dirigida aos pais não visa fazer com que suas questões sejam
trabalhadas na terapia do filho, mas possibilitar que eles possam se
confrontar com suas próprias dificuldades - que, por eles, são ignoradas
– e, quem sabe, sendo necessário, iniciarem uma análise em seu próprio
nome. Fique claro que isso não é o mesmo que culpabilizá-los pelo
problema do filho. Acredito que convocar tanto a mãe quanto o pai a
falar sobre a criança, o lugar que esta tem para eles e também a falar
sobre si, contribui para o trabalho analítico desenvolvido com crianças
de um modo geral. É comum escutarmos a mãe, já que é ela quem
normalmente faz a demanda e leva a criança aos atendimentos. Contudo, se
identificamos que o sintoma da criança vem responder ao que há de
sintomático no casal parental e, mais ainda, que a agitação da criança
vem ocupar um lugar de distância entre ela e a mãe, que deveria estar
sendo produzido pela função paterna, por que abster-se de convocar o
pai? Ignorar o que o pai tem a dizer, mesmo que ele próprio faça isso, é
confirmar a posição contemporânea de deslocar o pai de sua função e,
como sabemos, isso não ocorre sem gerar dificuldades à criança.
*
Parte do Trabalho apresentado na Jornada Anual de Cartéis 2006 da
Escola Brasileira de Psicanálise (EBP - RJ), cujo tema era "A atualidade
clínica da transferência nas novas formas de laços sociais e
familiares.". Texto produzido a partir do cartel “Princípios da clínica
psicanalítica com crianças.”, que contava com as participantes: Cristina
Duba (mais – 1), Cristiane Blume, Fernanda Brito e Flavia Bonfim.
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BIBLIOGRAFIA:
q FREUD, S. Inibições, sintomas e angústia. (1926) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de janeiro: Imago Ed., 1996. v. XX.
q HANNA, M. Inibições revistas à luz do cotidiano da clínica psicanalítica. In: HANNA & SOUZA (orgs.) O objeto da angústia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.
q __________
O distúrbio déficit de atenção é “um sintoma posto no museu”? Uma
leitura psicanalítica da síndrome do distúrbio de hiper-atividade e
déficit de atenção.” In: Latusa, nº 8, Rio de Janeiro, 2003.
q LACAN, J. Notas sobre a criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003.
q LACAN, J. Seminário 10 – A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.
q LAMY,
M “Meu filho não presta atenção em nada!” TDA/H – sabemos tratar?
Evento promovido pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, em novembro de
2005.
q __________ Resistência e desejo do analista: quem trabalha na psicanálise com crianças. In: Ford-Da, nº 4/5, Rio de Janeiro: Revinter, 1998.
q MILLER, J. A criança entre a mulher e a mãe. In: Opção Lacaniana, São Paulo: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 21, Abril/1998.
q ROY, M. "Tiens-toi tranquille!" In: "La petite girafe" Paris, Ed. Agalma, revue de la Diagonale francophone du Cereda, nº 18, outubro de 2003.