Revista Psicopedagogia
versão impressa ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.26 no.80 São Paulo 2009
contribuição para a ampliação do conceito
Modality of learning: a contribution to the enlargement of the concept
Regina Orgler Sordi
Psicóloga;
Doutora em Psicologia da Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS); Professora do Instituto de Psicologia da
UFRGS
Correspondência
RESUMO
O
conceito de modalidades de aprendizagem é uma das pedras angulares
da teoria psicopedagógica clínica por permitir descrever e
compreender a forma pessoal com que cada sujeito acerca-se e
relaciona-se ao objeto de conhecimento. Este artigo pretende, à luz
das contribuições seminais de Sara Paín e Alicia Fernández, bem como,
contribuições de autores da filosofia e psicanálise que têm se
dedicado ao estudo do pensamento em sua potência estética, ampliar o
conceito de modalidades de aprendizagem. Introduz o conceito de recepção,
relacionado à dimensão estética do pensamento, o qual, associado aos
mecanismos assimilativo e acomodativo, formam uma tríade capaz de
incluir, para além dos aspectos recognitivos da aprendizagem, sua
dimensão inventiva e problematizadora.
Unitermos: Aprendizagem. Modalidades de aprendizagem. Mecanismos assimilativo/acomodativo.
SUMMARY
Modalities
of learning is one of the keystone concepts of the clinical
psycho-pedagogic theory which allows to describe and understand the
personal way in which one approaches and relates to the object of
knowledge. This article intends, enlightened by the seminal
contributions of Sara Paín and Alícia Fernández, as well as, authors
from philosophy and psychoanalysis who have been dedicated to the
study of thought in its aesthetic potency, to enlarge the concept of
modalities of learning. It introduces the concept of reception which is
related to the aesthetic dimension of thought which, in association
to the concepts of assimilation and accommodation, form a triad able
to include, more than the recognitive aspects of learning, its
inventive and problematical dimension.
Key words: Modalities of learning. Assimilation/accommodation mechanisms. Learning.
INTRODUÇÃO
O
estudo sobre a aprendizagem humana, do ponto de vista das
significações do aprender, foi fortemente influenciado pelas seminais
contribuições de Paín1 e Fernández2. A partir
de seus desenvolvimentos, não apenas compreendeu-se melhor a
indissociabilidade entre as dimensões conscientes e inconscientes do
pensamento, como também, inaugurou-se uma nova disciplina - a
Psicopedagogia Clínica - que desenvolveu uma concepção mais complexa
do sujeito da aprendizagem. Este último não se limita ao aluno, mas
ao sujeito aprendente, aquele que, a partir do vínculo com o outro
humano, torna-se capaz de se reconhecer ativo em sua história e de se
responsabilizar pela autoria de seu pensamento.
Ao longo de sua obra, Fernández3
chega a reconhecer que vários conceitos serviram como ferramentas
importantes e até fundamentais para o desenvolvimento de suas idéias.
Reconheceu que um conceito, porém, mereceu atenção especial por
parte dos estudiosos de sua obra, bem como, daqueles profissionais
que, em suas práticas pedagógicas e/ou psicopedagógicas, ocuparam-se
de estudá-lo e melhor compreende-lo. Trata-se do conceito de
''modalidade de aprendizagem". De um único capítulo dirigido ao
mesmo, em sua primeira obra2; escreve um novo livro3;
no qual dedica, pelo menos, dez de seus dezesseis capítulos a este
tema. Entretanto, a autora deixa uma questão para ser melhor estudada
e discutida.
Num
olhar retrospectivo, a primeira pessoa a introduzir o termo
"modalidade", para referir-se à aprendizagem, foi Sara Paín.
Baseando-se nas hipóteses piagetinas, desenvolve um modelo de
construção de diagnóstico psicopedagógico, para o qual inclui a
necessidade de se conhecer a "modalidade do processo
assimilativo-acomodativo". Fernández2,3 retomará o
conceito de "modalidade", porém, não mais circuns-crevendo apenas ao
pocesso assimilativo-acomodativo, tal como preconizado por Paín, mas
introduzirá um novo conceito: "modalidades de aprendizagem". Neste
sentido, sempre que falamos em aprendizagem, no campo
psico-pedagógico clínico, estamos nos referindo simultaneamente a,
pelo menos, quatro elementos que compõem o seu processo:- organismo,
corpo, inteligência e desejo - todos eles entrelaçados e afetando-se
mutuamente. Ora, se o conceito em questão é "modalidades de
aprendizagem", este deve incluir os quatro elementos. Na elaboração
inicial de Paín1- modalidade do processo
assimilativo-acomodativo - estaríamos mais fortemente assentados
sobre o vértice da inteligência, um dos elementos da aprendizagem.
Acompanhando os desenvolvimentos de Fernández3; vemos que a
descrição da modalidade assimilativa-acomodativa não parece ser
suficiente para dar conta da descrição das modalidades de
aprendizagem, muito embora, assinala a autora, sigamos trabalhando com
os mesmos termos hiper/hipo assimilação/acomodação, originalmente
apresentados por Paín.
Neste sentido, Fernández3
lança alguns questionamentos: "Então, por que continuamos utilizando
os termos ´assimilação´e ´acomodação´para falar do operar
intelectual? Tenho me perguntado: será por fidelidade a Piaget? Não
creio. Será, então, por fidelidade a Sara Paín? Poderia ser, mas no
momento, ainda não encontrei outros termos que me satisfaçam" .
O
presente artigo apresenta uma contribuição no sentido de propor a
introdução de um terceiro termo para compor juntamente com a
assimilação e a acomodação. Pretende, com essa contribuição,
enriquecer e/ou ampliar a compreensão das modalidades de aprendizagem.
Em sua obra mais recente, Fernández3
entende que participam das modalidades de aprendizagem, "...uma
série de aspectos (conscientes, inconscientes e pré-conscientes), da
ordem da significação, da lógica, da simbólica e da estética".
Ao
englobar as teses de um pensamento estético, a autora propõe um
avanço na compreensão das modalidades de aprendizagem que, a partir
da década de 90, introduz na teoria psicopedagógica clínica à
dimensão estética do pensamento Pain3 como mais uma das
estruturas que compõem a aprendizagem, juntamente às estruturas
lógico/objetivas e simbólicas. Todavia, no momento de descrever as
modalidades de aprendizagem de um sujeito, a autora enfatiza os
aspectos já apresentados por Paín4; da modalidade do
processo assimilativo-acomodativo, acrescenta os aspectos referentes
às significações, mas não introduz os aspectos relativos à elaboração
estética do pensamento. Ou seja, já há uma ampliação com relação ao
conceito de modalidade do processo assimilativo-acomodativo, o qual
dirige-se para a elaboração lógica do pensamento, porém a
consideração ao estético, embora mencionado na definição geral, não
participa, de forma mais operacional, do conceito de modalidades de
aprendizagem. O estético diz respeito ao corpo não apenas em sua
dimensão de corpo marcado pelo outro, mas um corpo-subjetividade à
medida em que este vai sendo afetado por novos universos5. Trata-se de um corpo vibrátil5 ou de um corpo como lugar de ressonância estética4;
este não mais sede somente das representações, como na estrutura
simbólica, mas corpo-receptáculo, cuja mera presença frente ao
espetáculo da vida, provoca afecções cujos efeitos são
indeterminados. Trata-se, portanto, de uma dimensão pré-lógica e
pré-simbólica do pensamento, prévia à estrutura das significações.
Como
incluir essa noção de corpo estético compreendendo-o como
participante da formação das modalidades de aprendizagem? Esse é o
desafio a que se propõe esse artigo.
A
primeira parte deste trabalho apresentará o conceito de modalidade
do processo assimilativo-acomodativo, elaborado por Paín1 e, posteriormente ressignificado por Fernández3
e sua contribuição no sentido de permitir um novo olhar sobre
quem ensina e quem aprende. Por sua vez, será mostrado que a referência
ao elemento "corpo", como um dos quatro elementos que compõem a
aprendizagem, ainda se relaciona mais fortemente ao corpo constituído
e simbolizado no vínculo com o outro, um corpo que dará origem a um
ego inicial, corporal, sede das ressonâncias afetivas e primeira
fonte de contato com a realidade. Precisaremos introduzir a idéia de
um corpo estético para dar lugar, na construção da modalidade de
aprendizagem, à dimensão sensível do humano, pré-lógica e
pré-simbólica, mas da qual evolui toda capacidade criativa que
condensa a história da cultura e o devir da inventividade inerente a
toda aprendizagem.
DA MODALIDADE DO PROCESSO ASSIMILATIVO-ACOMODATIVO À MODALIDADE DE APRENDIZAGEM
Em uma de suas últimas obras, Fernández3
constata: " Os alunos e os leitores ensinam-nos muitíssimo. Às
vezes, permitem que o professor e o autor dêem prioridade a algum
aspecto de suas idéias e revalorizem sua importância. Isso ocorreu
comigo com o conceito de ´modalidade de aprendizagem´, que venho
trabalhando desde A Inteligência Apriosionada".
Reconhecendo sua importância, Fernández3
define a modalidade de aprendizagem como "um molde, ou esquema de
operar que vai sendo utilizado nas diferentes situações de
aprendizagem. É a forma como cada sujeito desvela o oculto, com o
objeto a conhecer.
Em
cada um de nós, podemos observar uma particular ´modalidade de
aprendizagem´, quer dizer, uma maneira pessoal para acercar-se ao
objeto de conhecimento e para conformar seu saber. Tal modalidade se
constrói desde o nascimento e, através dela, nos enfrentamos com a
angústia inerente ao conhecer-desconhecer" 2.
Trata-se,
portanto, de uma tensão entre o que se impõe como
repetição/permanência de um modo anterior de relacionar-se e o que
precisa mudar nesse modo de relacionar-se com o objeto de
conhecimento, consigo mesmo como autor e com o outro ensinante.
Quando
fala em molde relacional, a autora refere-se a uma forma que cada
sujeito utiliza para aprender, a qual inclui um conjunto de aspectos:
da ordem da significação, da lógica, da simbólica, da corporeidade e
da estética. De maneira geral, seguindo os mecanismos que regem o
operar intelectual, descritos por Piaget, devemos pensar que
assimilação e acomodação devem estar equilibrados para que essa
tensão entre o conhecido e o novo produzam uma aprendizagem saudável.
Porém, esses mecanismos respondem pelo acionar da inteligência e não
são suficientes para compreender a experiência corporal e estética
da aprendizagem. A assimilação, para Piaget6 é o processo
de integração cujo esquema é o resultante. É o movimento do
processo de adaptação pelo qual os elementos do ambiente se alteram
para serem incorporados na estrutura do organismo. Mas um esquema de
assimilação é incessantemente submetido às pressões das
circunstâncias e pode se diferenciar em função dos objetos aos quais é
aplicado. A acomodação é o movimento do processo de adaptação pelo
qual o organismo se altera, de acordo com as características do
objeto assimilado. Piaget observa que, apesar das variações entre os
movimentos de assimilação e acomodação, há uma tendência geral a uma
invariância, em qualquer processo de adaptação do ser vivo. Essas
invariâncias proporcionam o vínculo fundamental entre a biologia e a
inteligência.
Paín1
intitula de "modalidade do processo assimilativo-acomodativo" ao
processo de adaptação que, conforme Piaget, cumpre-se graças ao duplo
movimento complementar de assimilação e acomodação. A
investigação sobre esse processo permitirá concluir sobre as
oportunidades que o sujeito teve para fazer uma adaptação inteligente.
Por sua vez, a inibição precoce de atividades
assimilativo-acomodativas dá lugar a modalidades nos processos
representativos, cujos extremos podem ser caracterizados conforme o Quadro 1.
Ao trabalhar com modalidade de aprendizagem, Fernández2,3
considera a importância de se estudar a modalidade do processo
assimilativo-acomodativo, tal como propõe Paín. Entretanto, embora
utilizando-se da mesma nomenclatura sobre as modalidades hiper e hipo
acomodativas/assimilativas, Fernández realiza um contraponto com as
definições originais, para incluir os aspectos concernentes à
subjetividade.
Já
não estamos mais puramente no campo da análise da modalidade do
processo assimilativo-acomodativo, mas mais próximos a uma
compreensão de aprendizagem, que engloba a trama
organismo-inteligência-corpo-desejo. É uma trama que embora se
expresse em um sujeito particular, é necessariamente constituída e
construída no vínculo com o outro. Para tanto, operam junto ao
mecanismo da assimilação, as emoções, os desejos, os sonhos, ilusões e
frustrações, as angústias, as alegrias e sofrimentos do corpo. A
presença dos fatores intersubjetivos permite pensar que a modalidade
de aprendizagem de cada sujeito estará mais ou menos favorecida de
acordo com:
- "o
grau de permissão que tenha sido dado ao sujeito em sua infância
(e que lhe seja dado no presente) para questionar sem sentir que o
questionado sofre ou faça sofrer e para diferenciar-se sem perder o
amor;
-
as experiências prazerosas e dolorosas que seus pais tenham-lhe
permitido em relação ao responder perguntas difíceis, eleger coisas
diferentes dos outros, opinar diferente;
-
as experiências prazerosas ou dolorosas que seus professores
tenham-lhe permitido e oferecido com relação a facilitar ou
culpabilizar a pergunta, as escolhas e a diferença;
- as experiências lúdicas facilitadoras e impeditivas ou sancionadas3".
Estes
aspectos dizem respeito aos movimentos de assimilação-significação.
Ainda temos os movimentos de acomodação-significação que dizem
respeito às diferentes identificações do sujeito, com as aberturas ou
fechamentos a espaços confiáveis ou persecutórios para o
desenvolvimento das aprendizagens.
Acompanhando as definições das duas autoras, temos a síntese apresentada no Quadro 1.
A
participação do corpo na aprendizagem e, por consequência, a
participação do corpo na construção da modalidade de aprendizagem
dá-se por meio da novela vincular. O corpo constituído por essa
dramática humana, sede de um organismo que forma sua infra-estrutura
neuro-fisiológica, sede de uma capacidade para transformar os
esquemas reflexos em esquemas de ação, construtores da estrutura
lógica é, também, sede de intercâmbios humanizadores, constitutivos
da estrutura simbólica.
A
dimensão corporal comparece como o lugar onde as aprendizagens são
registradas. Esse registro vai se entretecendo no vínculo
necessariamente assimétrico entre aquele que deseja que o outro
aprenda e o ser aprendente, em cuja formação inicial vão se
inscrevendo os desejos de autoria e de autonomia. Curioso paradoxo da
existência e da formação das modalidades de aprendizagem, pois o
desejo saudável com relação ao aprender é justamente aquele que se
constitui num vínculo humano necessariamente fusional, mas com vistas
a logo transformar-se num campo de diferenças e individuações.
Entretanto,
a participação do corpo não se esgota nestas duas dimensões - a
lógica e a simbólica. Esse corpo é simultaneamente um lugar de
ressonância estética, para o qual o mundo torna-se presente. Não
poderíamos sequer afirmar que a novela vincular precederia a
capacidade humana para o assombro, a beleza e a ressonância estética
do mundo. Meltzer7 assim descreve o enigma do nascimento
(e não, como se pretendeu até então, o trauma do nascimento): "A
devotada mãe comum apresenta ao seu lindo bebê comum um objeto
complexo de enorme interesse, tanto sensorial como infra-sensorial.
Sua beleza externa, concentrada, como deve ser, nos seios e na face,
complicada em cada caso pelos mamilos e pelos olhos, bombardeia o
bebê com uma experiência emocional de qualidade passional, resultando
em que o bebê seja capaz de ver estes objetos como ´lindos´. Mas
permanecem desconhecidos para o bebê o significado do comportamento
de sua mãe, do aparecimento e do desaparecimento do seio e da luz de
seus olhos, de uma face na qual as emoções passam como sombras de
nuvens sobre a paisagem. Afinal de contas, o bebê veio para uma terra
estranha onde desconhece a linguagem e também as indicações e
comunicações não verbais costumeiras. A mãe lhe é enigmática; ela
exibe um sorriso de Gioconda a maior parte do tempo, e a música de
sua voz fica constantemente mudando de tom maior para o menor. Como
´K´(o de Kafka), o bebê precisa esperar por definições advindas do
´castelo´- o mundo interno de sua mãe. (...)Isto é o conflito
estético, que pode ser enunciado de modo mais preciso em termos do
impacto estético do exterior da ´linda´ mãe, disponível aos sentidos,
e do enigmático interior que precisa ser construído por meio da
imaginação criativa. Tudo na arte e na literatura, e toda e qualquer
análise testemunha sua perseverança através da vida".
Não
resta dúvida que este roteiro estético desenvolvido por Meltzer, no
campo psicanalítico, traz para um primeiro plano da fundação do
sujeito, a capacidade de apreciar as qualidades do objeto, de suportar e
perseguir seu mistério, para sempre perdido no interior outrora
habitado na mãe, mas que pode ser construído a partir de evidências
de suas qualidades mentais. O autor não menciona, em primeiro lugar,
um encontro com a mãe, apenas por meio do toque acariciante ou do
olhar humanizador da mesma, mas ressalva neste encontro o complicado
bombardeio de luzes e sombras, com o aparecimento e desaparecimento
dos mamilos e do brilho dos olhos da mãe. Já está presente, desde o
início, quase como um pré-requisito para a existência, o mistério
que é para o bebê decifrar esse mundo de ressonâncias afetivas, de
sons, cores, ritmos e harmonias que desfilam diante de seus olhos recém
chegados ao mundo.
Para Paín4;
qualquer teoria sobre a transmissão do conhecimento ficaria
incompleta sem a consideração à elaboração estética do pensamento.
Para Deleuze8; o momento estético é o detonador, por
excelência da cognição, e não o seu contrário. A cognição emergeria
como um momento segundo, para deixar de ser só mistério e ser
reabsorvido numa lógica capaz de contê-lo e explicá-lo. O momento
estético é gratuito, fortuito, está sempre em excesso, sempre além do
que se pede.
"Tomar
a rosa como sub-classe das flores ou como símbolo do efêmero suprime
o encanto de sua aparência. O momento estético é o da aparição,
em forma de rosa, de algo da ordem da perfeição. É uma captação em
êxtase, quer dizer, na passividade da descentração de si mesmo.
Momentos obrigatoriamente de excesso e de exceção, imprescindíveis à
paixão de pensar e que o pensamento mesmo anula, evitando a psicose"4.
O
momento estético não responde a nenhum desejo, pois a surpresa vem
do que não estava desejado, é algo que vem da abertura. Ele pode ser
muito frequente, mas não pode durar muito mais do que um par de
instantes, porque por uma parte, carece de ancoragens empíricas para
manter-se, já que não se pode descrever, nem imaginar e, por outra
parte, para dar-se conta que, em verdade, houve tal momento, há que
se tomar distância, recordá-lo e, então, descrevê-lo e imaginá-lo,
saber que foi correto, da mesma maneira como se faz com os sonhos,
que sabemos que existem, porque deles despertamos.
Para
acercar essa noção de um corpo estético que instaura com seu
presente, a presença das coisas no mundo, necessitamos introduzir um
momento de recepção, anterior mesmo ao mecanismo da assimilação.
Dessa forma, a aprendizagem se daria em dois momentos quase simultâneos
- o da recepção e o da assimilação/acomodação. Por conseguinte, o
conceito de modalidade de aprendizagem não poderia apenas se definir
pelos mecanismos de assimilação e acomodação, tingidos pelos esquemas
lógicos e de significações, mas, também, deveria contemplar a
receptividade estética. Esta última, por sua vez, só pode
expressar-se por meio de seus efeitos. E quais são os efeitos, como
se expressam no processo de aprendizagem?
Para
podermos excursionar pela dimensão estética do pensamento, é preciso
que revisemos nossa compreensão sobre a aprendizagem. Conforme
explica Kastrup9; as teorias psicológicas da aprendizagem
se constituíram com base no discurso da ciência e buscaram as
condições invariantes da cognição, sob a forma de leis científicas,
demarcando o que o campo possui da ordem da necessidade e da
repetição. Sob este vértice, a aprendizagem é compreendida em sua
vertente recognitiva e direcionada à solução de problemas. As
experiências de recognição relacionam-se ao reconhecimento prático ou
consciente de um objeto. Caracterizam-se por sua utilidade na vida
prática e por assegurar nossa adaptação ao mundo. Essas aprendizagens
ocorrem quando as sensações ativam um traço mnêmico e ocorre uma
síntese, que é fonte da atividade de reconhecimento, que torna o
presente, o passado e o novo, como formas identitárias e que tem o
papel de assegurar a unidade da cognição10.
Existe
um outro nível, este menos estudado, onde a aprendizagem começa
justamente ali onde não reconhecemos, mas ao contrário, estranhamos,
problematizamos. Neste caso, as experiências de problematização
provocam uma divergência entre as faculdades de sensibilidade,
memória e imaginação. Falamos de uma aprendizagem inventiva, para a
qual, em primeiro plano, está a posta do problema e, não, a solução
de problemas. Compreender a aprendizagem como recognição é
trabalhar pela solução de problemas, ao passo que a aprendizagem
inventiva é aquela que acontece, antes de tudo, na problematização,
mergulhando no mundo sígnico da matéria, empreendendo-se numa
errância.
Poderíamos
deduzir que os mecanismos de assimilação e acomodação
responderiam pelo nível recognitivo da aprendizagem. Isto por que é
por meio da descrição destes mecanismos invariantes que se explica o
progresso do conhecimento, partindo de estruturas elementares e se
integrando em estruturas cada vez mais complexas. Porém, se
compreendemos os processos cognitivos não apenas a partir de leis
gerais e necessárias, que conduzem à solução de problemas, mas como
uma invenção de problemas, nos aproximamos a uma vertente mais
experencial, para além dos quadros de referência da experimentação
científica que foram traçados pela inteligência. Segundo Deleuze8;
quando a inteligência intervém na busca de sentido, de solução de
problemas, é sempre num momento segundo, depois da ação deste
contato imediato com o que Bérgson11 chama de "emoção criadora", mas cuja compreensão aproxima-se do momento ou do impacto estético4,7. Para Bérgson11;
a emoção criadora diz respeito a um contato imediato com algo que é
exterior ao sujeito e lhe provoca um abalo afetivo, uma agitação que é
criadora na medida em que exige representações.
Qual
o lugar, no conceito de modalidade de aprendizagem a esse aspecto
receptivo, imediato, de corpo-presença frente ao espetáculo do mundo e
que força a cognição? Pensamos que se torna necessário introduzir
o elemento "recepção", aos mecanismos assimilação e acomodação, para
compor uma visão mais ampla da modalidade de aprendizagem. Conforme
explica Deleuze12; "pensar, é pensar por conceitos, ou
então por funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos
não é melhor que o outro, ou mais plenamente, ou mais sinteticamente,
ou mais completamente ´pensado´". Aquele que é capaz de manter uma
atitude estética receptiva, pensa por sensações, é mais sensível aos
signos emitidos pela matéria e se vê constrangido a decifrar seu
mistério - um mistério inerente a todo conhecimento.
Numa
situação pedagógica ou psicopedagógica, em que importa tanto a
observação das modalidades de aprendizagem, não daremos passagem
apenas aos esquemas de significação/assimilação/acomodação,
construtores de um corpo subjetivado, mas deremos passagem ao
corpo-afecção. Este último, não apenas visto como instrumento de
apropriação de conhecimento, corpo-registro de experiência,
corpo-recordação, síntese de ser e de saber, porém: "Nossa questão
agora é como pensar o corpo em sua dimensão estética. Trata-se,
aqui, do corpo como vivendo e não como esquema morfológico; do corpo
que instaura com seu presente, a presença das coisas no mundo. É o
corpo aqui e agora que capta o espetáculo desde um ponto de vista" 4.
Há
duas maneiras de instaurar as coisas no mundo: a primeira, é por
meio da recognição. ''Isto é uma árvore", "chove", etc., dimensão
necessária para a aprendizagem, todavia, não suficiente. A outra
maneira é através da problematização. Esta se manifesta nos momentos
em que a ignorância se orienta para uma manifestação enigmática,
em que não fugimos dela de forma ascética e pragmática, resolvendo de
vez o mistério que ela nos apresenta, mas contemos uma emoção
criadora vivida no corpo e que nos impele a colocar problemas ao
conhecimento
UMA DEFINIÇÃO AMPLIADA DAS MODALIDADES DE APRENDIZAGEM
Compreender
a aprendizagem na sua dimensão problematizadora/inventiva coloca-nos
numa via divergente à recognição, para a qual os mecanismos de
assimilação e acomodação respondem como principais invariantes.
Inti-tularemos de capacidade receptiva a esta capacidade de
abertura, a sensibilidade, o composto de forças que afetam ao
sujeito. Quanto mais assimilativo (hiper-assimilação), maior a força
das sensações e o sujeito fica sem dar vazão à recepção e sem
saída cognitiva ou simbólica para o mundo de sensações que o invade: o
mundo se torna pura aparência, um ritmo estéril e psicótico4.
Quanto menos assimilativo (hipo-assimilação), menor a capacidade de
recepção e menor a capacidade de liberar a atitude estética, ficando o
sujeito paralisado no pragmatismo e no desencanto precoce.
Quanto
à acomodação, na medida em que este mecanismo responde pela
internalização de imagens, podemos pensar que, se a hiperacomodação
está relacionada a uma superestimulação da imitação e, se a
hipoacomodação provavelmente aparece quando não se respeitou o tempo
da criança, os problemas na capacidade receptiva respondem a uma
intrusividade do objeto sobre o sujeito. Acompanhando a hipótese de
Meltzer:" A formulação do conflito estético como sendo um
problema interior-exterior, um conflito entre aquilo que podia ser
percebido e aquilo que só podia ser interpretado conduziu diretamente
ao problema da violência enquanto violação: violação da privacidade
dos espaços internos e de suas representações. A força integradora
dessa visão da violência fez-se sentir através de toda a gama de
violações físicas e mentais, do indivíduo contra o indivíduo, do
grupo contra o indivíduo e do grupo contra o grupo"7.
Nesta
descrição, o autor intitula de violência a toda condição que, dado
seu caráter de intrusividade, tira a essência do impacto da beleza
do mundo e da intimidade apaixonada com outro ser humano, além de
diferenciar o mistério do segredo. O mistério está associado ao
impulso em direção ao conhecimento, forjando conjeturas imaginativas à
espera de uma revelação. Implica um reconhecimento da privacidade
do objeto e promove a capacidade de tolerar o desconhecido sem apressar
interpretações prematuras de sentido e motivações. Implica a
capacidade de tolerar a beleza do mundo, da qual a mãe é a
representante inicial, apesar dos aspectos desconhecidos,
incompreensíveis e aterrorizantes envolvidos13. Já, o
segredo consiste em curiosidade intrusiva, produto da violação dos
espaços internos. A curiosidade transforma-se em desejo de
conhecer/invadir o espaço do outro. Conforme prevalecer o mistério ou
o segredo, teremos um divisor de águas entre os aspectos criativos e
destrutivos do conhecimento.
Para
que o sujeito possa acomodar o material assimilado, seu espaço
psíquico deve estar o mais aberto possível ao mistério, pois este não
impõe de fora para dentro e, sim, pressiona, permite que o interior
busque decifrar a mensagem enigmática.
Podemos
dizer, portanto, que associada à assimilação, a capacidade receptiva
diz respeito às possibilidades de "segurar em tensão" os mistérios
transmitidos pelo objeto, o que pressupõe o desenvolvimento da
capacidade problematizadora e inventiva - possibilidade de colocar
problemas - no campo da aprendizagem. Associada à acomodação, a
capacidade receptiva diz respeito a um espírito capaz de tolerar a
tensão entre o decifrável e o resto indecifrável inerente a todo
conhecimento.
CONCLUSÃO
Acompanhando
os mecanismos assimilativo/acomodativo que têm definido as
modalidades de aprendizagem, sugerimos a introdução do triângulo
recepção/ assimilação/acomodação, sendo a recepção, uma atitude
corporal "suficientemente em tensão como para emocionar-se e
suficientemente distraída como para deixar-se surpreender"4.
A recepção saudável expressa-se, assim, por meio de um corpo
presente, capaz de ser afetado e de sustentar uma atitude inventiva -
de colocação de problemas - antes de esquivar-se por uma saída
imediata à busca de soluções.
Ao
invés de falarmos em hipo ou hiper assimilação, poderíamos conceber
as modalidades de aprendizagem expressas em hipo ou hiper
recepção-assimilação-acomodação. De forma geral, teríamos as
definições no Quadro 2.
A
ênfase na capacidade receptiva, como um corolário da elaboração
estética do pensamento e na construção da modalidade de aprendizagem,
pode ser uma ferramenta útil no desenvolvimento dos processos de
ensino-aprendizagem. Na medida em que a educação, em geral, está mais
voltada aos processos recognitivos e de solução de problemas, o
acolhimento ao pensamento divergente parece não encontrar muitos
espaços para a composição de modalidades de ensino e aprendizagem
mais inventivas. Na medida em que o conhecimento é concebido
teleologicamente, visando ao cumprimento de leis gerais, qualquer
manifestação que ultrapasse esses limites, colocando-lhe problemas,
tende a ser recusada14.
Ao
conceber as modalidades receptivas como componentes das modalidades
de aprendizagem, não estamos pretendendo nenhum avanço com relação
aos desenvolvimentos já realizados pela teoria psicopedagógica, mas
ao contrário, reivindicando um recuo aos aspectos do aprender que
precisam ser reiteradamente enfatizados: os de que o aprender não se
restringe a dominar as ferramentas do método científico, mas
pressupõe viver e desenvolver as qualidades sensíveis inerentes a
todo o conhecimento, mais próximas a fruição de uma obra de arte do
que do distante escrutínio de seus componentes.
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14.
Sordi RO. A comunicação professor-aluno: uma contribuição ao
estudo sobre a construção do conhecimento [Tese de doutorado].Porto
Alegre:FACED,UFRGS;1999.
Correspondência: Regina Orgler Sordi
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E-mail: sordi.vov@terra.com.br
Artigo recebido: 12/6/2009
Aprovado: 2/8/2009
Trabalho realizado no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.
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