domingo, 24 de junho de 2012

ACORDEM PAIS

HIPERATIVIDADE E PSICANÁLISE*

Autora: Flavia Bonfim
Sinônimo de agitação, desatenção, dificuldades escolares e impulsividade, a palavra “hiperatividade” já faz parte do vocabulário contemporâneo. Proveniente do saber médico, ela, com o apoio da mídia, tem habitado os mais variados discursos (de psicólogos,  psicopedagogos,  professores e,  até,  dos  pais) e é cada vez mais comum recebermos pacientes com este diagnóstico. A hiperatividade ou, para usarmos a terminologia da medicina, o Transtorno de Déficit de Atenção por Hiperatividade (TDAH), não se constitui como um diagnóstico para a psicanálise, todavia, isso não nos exclui de pensar sobre a agitação da criança. Sendo assim, proponho apontar algumas reflexões psicanalíticas a respeito do que se tem chamado de hiperatividade.
Sobre o sintoma da criança, Lacan, em suas “Notas sobre a criança”, nos diz o já conhecido aforismo “O sintoma da criança se acha no lugar de responder ao que há de sintomático na estrutura familiar.” (2003, p. 369) Para ser mais preciso, Lacan (ibid.) afirma que, o que há de sintomático na criança depende das questões que assolam o casal ou a mãe. São questões inconscientes, que tratam daquilo que eles não sabem a respeito de si próprios. Contudo, não podemos dizer que a criança é um mero receptor passivo das dificuldades do casal parental. Há uma participação da criança na formação do seu sintoma na medida em que ele surge em função do “modo como ela subjetiva o que foi transmitido e o que ela investe no sintoma, o ganho que ela retira dali, e que constituirá ‘a resistência com a qual ela se apegará à doença’ ”. (LAMY, 1998, p. 129)
Apoiando-se na formulação lacaniana sobre o sintoma da criança e procurando pensar especificamente a hiperatividade, Maryse Roy (2003) afirma que a agitação ocupa o lugar da distância que não há entre a criança e a mãe, distância, que oportunamente, pode produzir o pai. É uma distância que visa recusar as demandas maternas que lhe são feitas. Cabe aqui assinalar uma tendência atual, a saber, a dificuldades dos pais em relativizar os ditos e imperativos maternos e, consequentemente, em propiciar tal distância.
Desse modo, a hiperatividade vem responder a uma dificuldade na incidência da função paterna sobre o desejo materno, de modo que o objeto criança não seja tudo para a mãe e que o desejo da mulher/mãe possa também ser dirigido a um homem. Roy (ibid.) continua, e afirma que a melhor maneira de estabelecer esta distância é o homem não recuar frente a fazer de uma mulher causa de seu desejo. Não proporcionar esta distância, não neutralizar, em certa maneira, o desejo do Outro materno, é deixar a criança em perigo, desamparada frente à sensação da possível aniquilação do seu ser. Sem essa distância, o enigma frente ao desejo do Outro pode se mostrar extremamente angustiante.
Roy (ibid.) chama atenção - e compartilho desta observação na clínica - para a freqüência com que as mães, ao falarem da agitação do filho, fazem referência à impotência do homem em exercerem seu papel de pai. Não podemos ignorar que essa queixa, contudo, pode estar dizendo do papel do homem como pai ou como marido. Roy (ibid.) acrescenta que, nesses casos, há um gozo em excesso da mãe, que diz da dificuldade do pai em exercer sua função. É um gozo enigmático e de difícil assimilação, que se impõe a criança e esta não sabe o que fazer. Penso se esse “não saber o que fazer” é justamente o que leva a criança a querer fazer tudo ao mesmo tempo na tentativa de dar conta desse gozo, que precisa ser contornado.
Maria Inês Lamy (2005) aponta que uma criança que não consegue ficar quieta no lugar, talvez não saiba qual seu lugar no mundo ou no desejo dos pais, ou pode estar colocando em questão o lugar que está reservado para ela no seu meio familiar. Pode também estar temendo ficar sem lugar nenhum ou pode, através de sua agitação, estar querendo se deslocar de um lugar identificatório, que para a criança se mostra insuportável. Desse modo, ela propõe pensar a agitação como equivalente à angústia frente ao enigma do desejo do Outro. A agitação surgiria, diz Lamy (ibid.), no momento anterior a produção da angústia. E o que angustia o sujeito é não saber que objeto a é para o Outro, pois, como afirma Lacan, a angústia “não é sem objeto”. (2005, p. 146)
Cabe aqui tratarmos também dos casos onde a hiperatividade está associada à desatenção, acarretando para muitas crianças severos problemas de aprendizagem. Maria Silva Hanna articula o déficit de atenção à inibição, sendo esta última, “uma tática de defesa que resiste ao desejo do Outro, enigma que provocaria a emergência da angústia.” (2003, p. 151) Freud, em “Inibições, Sintomas e angústia” (1926), já havia nos alertado quanto à íntima relação entre a inibição de uma função do eu e a angústia, na medida em que a primeira atua evitando o surgimento da segunda.  Hanna (2005), partindo da perspectiva lacaniana, escreve que a emergência da angústia advém do confronto com a pergunta Che vuoi? (Que queres?), que se desdobra para “O que o Outro quer de mim?”. Tal pergunta implica em se deparar com a falha radical de estrutura, com a castração do Outro, com o desejo do Outro. O inibido se antecipa a essa pergunta por meio de uma restrição da função do eu - no caso, uma restrição da função da atenção - mas paga promovendo, por outro lado, uma estagnação do seu desejo.
Diante disso, finalizo minhas reflexões sobre a hiperatividade apontando para uma possível direção de tratamento, no qual a escuta deve estar dirigida à criança e aos pais. O trabalho com a criança permite que a mesma encontre um espaço de simbolização para abordar aquilo que a angustia, ou seja, o enigma frente ao desejo do Outro. É também o lugar onde ela pode tentar tratar o excesso de gozo proveniente da mãe, ao invés de se agitar na tentativa em vão de se livrar de tal incomodo.  Na escuta dirigida à mãe, busca-se promover o encontro com o desejo dela que se encontra tamponado pelo sintoma do filho, impedindo-a de se haver com sua própria falta. E, nos casos onde o pai pode ser acessado, permitir que o mesmo venha a se deparar com sua dificuldade de tomar uma mulher como causa de seu desejo e exercer a função paterna, sem, contudo, nos propormos a intervir de modo a “fazer o pai funcionar”. Simplesmente convidar o pai da paciente a ir a uma consulta pode ter um papel importante na condução clínica.
A escuta dirigida aos pais não visa fazer com que suas questões sejam trabalhadas na terapia do filho, mas possibilitar que eles possam se confrontar com suas próprias dificuldades - que, por eles, são ignoradas – e, quem sabe, sendo necessário, iniciarem uma análise em seu próprio nome. Fique claro que isso não é o mesmo que culpabilizá-los pelo problema do filho. Acredito que convocar tanto a mãe quanto o pai a falar sobre a criança, o lugar que esta tem para eles e também a falar sobre si, contribui para o trabalho analítico desenvolvido com crianças de um modo geral. É comum escutarmos a mãe, já que é ela quem normalmente faz a demanda e leva a criança aos atendimentos. Contudo, se identificamos que o sintoma da criança vem responder ao que há de sintomático no casal parental e, mais ainda, que a agitação da criança vem ocupar um lugar de distância entre ela e a mãe, que deveria estar sendo produzido pela função paterna, por que abster-se de convocar o pai? Ignorar o que o pai tem a dizer, mesmo que ele próprio faça isso, é confirmar a posição contemporânea de deslocar o pai de sua função e, como sabemos, isso não ocorre sem gerar dificuldades à criança.

* Parte do Trabalho apresentado na Jornada Anual de Cartéis 2006 da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP - RJ), cujo tema era "A atualidade clínica da transferência nas novas formas de laços sociais e familiares.". Texto produzido a partir do cartel “Princípios da clínica psicanalítica com crianças.”, que contava com as participantes: Cristina Duba (mais – 1), Cristiane Blume, Fernanda Brito e Flavia Bonfim.
Add caption

BIBLIOGRAFIA:

q  FREUD, S. Inibições, sintomas e angústia. (1926) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de janeiro: Imago Ed., 1996. v. XX.

q  HANNA, M. Inibições revistas à luz do cotidiano da clínica psicanalítica. In: HANNA & SOUZA (orgs.) O objeto da angústia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.

q  __________ O distúrbio déficit de atenção é “um sintoma posto no museu”? Uma leitura psicanalítica da síndrome do distúrbio de hiper-atividade e déficit de atenção.” In: Latusa, nº 8, Rio de Janeiro, 2003.

q  LACAN, J. Notas sobre a criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003.

q  LACAN, J. Seminário 10 – A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.

q  LAMY, M “Meu filho não presta atenção em nada!” TDA/H – sabemos tratar? Evento promovido pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, em novembro de 2005.

q  __________ Resistência e desejo do analista: quem trabalha na psicanálise com crianças. In: Ford-Da, nº 4/5, Rio de Janeiro: Revinter, 1998.

q  MILLER, J. A criança entre a mulher e a mãe. In: Opção Lacaniana, São Paulo: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise,  nº 21, Abril/1998.

q  ROY, M. "Tiens-toi tranquille!" In: "La petite girafe" Paris, Ed. Agalma, revue de la Diagonale francophone du Cereda,  nº  18, outubro de 2003.

Nenhum comentário:

Postar um comentário